Desde de 2014, a World Heart Federation (WHF) realiza anualmente o programa Emerging Leaders, que tem como objetivo treinar e promover a troca de experiências sobre políticas de saúde cardiovascular entre pesquisadores e profissionais de saúde de todo o mundo. A cada edição, o programa tem um tema específico e em 2022 o foco foram as doenças infecciosas, como Doença de Chagas, Influenza, Covid-19 e Cardiopatia Reumática.

Incentivado pelo tema, o pesquisador e cardiologista mineiro Bruno Ramos Nascimento fez sua inscrição para o programa no início ano, sendo escolhido um dos 24 Emerging Leaders oriundos de 17 países, que se encontraram em Buenos Aires entre os dias 16 e 21 de outubro. Dias de imersão sobre a saúde cardiovascular global e sobre as formas de integrar a pesquisa com a atenção à saúde. E é sobre a importância de fazer parte deste Programa e a vivência em Buenos Aires que Nascimento fala nesta entrevista.

Como foi para o senhor fazer parte do Programa Emerging Leaders de 2022 da World Heart Federation? Fale um pouco sobre o programa e que o levou a se inscrever.

Para mim foi uma grande honra, uma oportunidade única de estar em contato com grandes mentores da pesquisa cardiovascular mundial, em uma imersão (Think Tank) para aulas, debates e troca de ideias sobre a saúde cardiovascular. O programa foi idealizado pelo Professor Salim Yusuf, um dos maiores expoentes da história da cardiologia mundial, em parceria com a WHF. O objetivo é, anualmente, reunir lideranças emergentes mundiais em pesquisa cardiovascular, para trazer à mesa diferentes ideias, pontos de vista e estratégias de pesquisa, sobretudo, a implementação do conhecimento científico para redução do impacto das doenças cardiovasculares no mundo.

Neste sentido, a World Heart Federation tem grande foco em doenças que afetam especialmente regiões com pior acesso à saúde e condições socioeconômicas desfavoráveis, mas também trabalha com tópicos relacionados às doenças crônicas com crescente impacto também em regiões desenvolvidas, como o Diabetes e a Hipertensão. Este ano em particular, o programa teve enfoque em doenças infecciosas. Como a Cardiopatia Reumática tem sido meu principal foco de pesquisa nos últimos oito anos e, considerando minha atuação também no campo de Doença de Chagas na UFMG, fiquei especialmente motivado em fazer minha aplicação para o programa. Fiquei surpreso e honrado em ter sido escolhido como um dos 24 Emerging Leaders deste ano.

Qual a importância do tema de 2022, Doenças Infecciosas, no contexto atual?

Este tópico (doença infecciosas) tem especial importância para a saúde global. De um lado, temos doenças que, apesar de muito prevalentes – especialmente em países em desenvolvimento –  e com elevada mortalidade, são extremamente negligenciadas do ponto de vista de assistência, de acesso aos cuidados em saúde e também de pesquisa. Como exemplo, podemos citar a Doença de Chagas, que tem elevada morbimortalidade, além de levar a sequelas extremamente incapacitantes. A prevalência na América Latina chega a quase 25% da população no norte da Argentina e Bolívia, e os dados de mortalidade, apesar de ainda imprecisos, são alarmantes. Outro exemplo, é a Cardiopatia Reumática, uma sequela da amigdalite estreptocócica, facilmente evitável com tratamentos simples, como os antibióticos, mas que ainda é responsável por quase 50% das cirurgias de troca valvar do SUS no Brasil. Temos também as doenças que recentemente emergiram como grandes ameaças à saúde global, como as doenças respiratórias. Em todas as fases da recente pandemia de COVID-19, pudemos ter uma ideia, com as pesquisas, de que o impacto destas infecções vai muito além da elevada mortalidade por causa respiratória. Elas também impactam na incidência de eventos cardiovasculares, e agravamento de doenças cardiovasculares preexistentes. Por isso, o tópico do Emerging Leaders deste ano é extremamente atual e relevante, e o desenvolvimento de projetos ligados às doenças infecciosas pode trazer benefícios para o planejamento de ações de saúde global.


Por trabalhar com os assuntos propostos pelo Emerging Leaders o senhor se interessou pelo Programa. Pode falar um pouco mais sobre esses seus estudos no Brasil?

Na UFMG, faço parte do grupo de pesquisa sobre Doença de Chagas liderado pelo Professor Antônio Ribeiro, e tenho desenvolvido diferentes projetos relacionados à doença. Meus focos pessoais de pesquisas em Chagas atualmente são: a epidemiologia da Doença de Chagas, com um estudo chamado RAISE (uma parceria da WHF com a Novartis), que objetiva reavaliar a prevalência da doença em regiões endêmicas e não endêmicas, a concorrência de suas diferentes formas clínicas (cardíaca, digestiva, tromboembólica, mista). Além de estudar o seu impacto econômico em diferentes cenários. Os dados oriundos do RAISE irão também contribuir para a atualização das estimativas de carga de doença para o estudo Global Burden of Disease. Além disso, tenho trabalhado com o valor prognóstico das alterações eletrocardiográficas na Doença de Chagas, e com o ecocardiograma como triagem para a forma cardíaca.

No entanto, minha principal linha de pesquisa é relacionada à Cardiopatia Reumática, uma colaboração internacional em pesquisa que se iniciou em 2013. O projeto chama-se PROVAR+ (Programa de RastreamentO da VAlvopatia Reumática e Outras Doenças Cardiovasculares) e os vários estudos em andamento são relacionados a: 1. rastreamento da Cardiopatia Reumática em sua forma latente (sem sintomas) em crianças e adolescentes de escolas e centros de saúde de regiões carentes, através de dispositivos ultraportáteis de ecocardiografia; 2. rastreamento de outras condições cardiovasculares crônicas em pacientes adultos e idosos em centros de saúde, tanto para identificação precoce de doenças cardíacas através do eco quanto para o desenvolvimento de escores de risco, baseados no ECG e no Eco, para priorização destes pacientes; 3. avaliação ecocardiográfica de pacientes com doenças infecciosas, como a Febre Amarela e a COVID-19; 4. desenvolvimento de sistemas de inteligência artificial para diagnóstico automático de alterações ao eco, relacionadas à Cardiopatia Reumática; 4. estudos genéticos sobre a cardiopatia reumática e seu caráter familiar.

Em 2022, foram 17 países de cinco continentes, sendo 24 participantes que estiveram todos juntos em Buenos Aires. O que o senhor nos conta sobre essa troca de experiência? E haverá uma continuidade nessa troca? 

A experiência de estar no Think Tank do Emerging Leaders em Buenos Aires foi extremamente enriquecedora e produtiva. No meeting, que tem a duração presencial de seis dias, a agenda é apertada, mas extremamente bem pensada do ponto de vista científico e interpessoal. Todos os dias há aulas magnas com grandes pesquisadores mundiais, sobre os principais tópicos abordados naquele ano. Líderes como Amitava Banerjee, Pablo Perel, Ezequiel Zaidel, Liesl Zuhlke, Antonio Ribeiro, Karen Sliwa e o próprio Salim Yusuf (que esteve presencialmente este ano) ministram aulas e discussões interativas sobre seus respectivos tópicos.

Os Emerging Leaders foram então divididos em três grupos, cada um com seus mentores específicos, para o desenvolvimento, em tempo recorde (cinco dias) de um projeto robusto, que englobe um plano de pesquisa a ser realizado em um ano, mas também uma forma de implementar este projeto, trazendo a pesquisa para próximo da população através de implementação de estratégias de cuidado com a saúde. Pessoalmente, fui alocado no grupo de Doença de Chagas, e fizemos um projeto relacionado à avaliação sobre o conhecimento de profissionais de saúde e da população sobre o melhor tratamento da cardiopatia Chagásica, a ser implementado em uma região extremamente carente do norte da Argentina (Santiago Del Estero).

Além disso, planejamos uma intervenção experimental, do tipo “prova de conceito”, de rastreamento da forma cardíaca na população local através do ECG e do ecocardiograma ultraportátil. Ao final da semana, os projetos são encaminhados ao board de experts da WHF para  revisão e ajustes e, se aprovado, segue para sua execução com um financiamento de parceiros da insitituição. Desta forma, o grupo se mantém unido tanto para manter as discussões e execução do projeto em questão, quanto para colaborações futuras. Com este formato, o programa oferece uma experiência interativa única aos participantes.

Qual a importância desse tipo de programa para a saúde da população?

Este tipo de programa permite, de forma única, a reunião de pesquisadores ligados a diferentes grupos, e com diversos focos e abordagens, do mundo inteiro. O intercâmbio é fundamental, pois a pesquisa cardiovascular deve ser um esforço colaborativo, e não individual. As instituições e grupos de pesquisa têm características e estratégias diferentes, e acesso heterogêneo à infraestrutura e insumos, especialmente em regiões com financiamento limitado. Assim, a colaboração inter-institucional, e sobretudo internacional, permite que os grupos se complementem, permitindo o desenvolvimento de projetos mais robustos e abrangentes, que aproveitem as melhores características e o expertise técnico e tecnológico de cada grupo. E a World Heart Federation tem cumprido bem este papel de integração através do programa Emerging Leaders e de outras iniciativas.

crédito – Imagem: World Heart Federation